quinta-feira, 19 de maio de 2022

O IGARAPÉ DO INFERNO

 

IGARAPÉ DO INFERNO, 1

            – Vou contar. O quê? Você quer que eu continue? Não, não, meu menino, dos líquidos do corpo, o pus, a gosma, a saliva, o muco, as palavras ingratas: a linfa a fonte o plasma aquoso, amarelo-transparente, entende o que digo?, enzimas, digo, ceras, seivas pegajosas, urina e cerveja, você não sabe o que é isso, de ontem, de outra época, das terras voadoras das palavras verazes, elásticas, humores, borracha, pau de leite, sim, tudo que esmaga e esguicha, mas o pior é o sangue, o sangue, mas sim, você me interrompeu com perguntas, e estou pegando o rumo, e você?, e você? Eu passei a vida toda de palavras de nada

            Era assim que falava Maneco Bastos, Manuel Bastos Filho, para aquele rapaz. Ele tinha o mesmo nome do falecido pai, Manuel Bastos, dono do Bar Bacurau, na João Coelho. Mas ninguém sabia ao certo, pois dizem que ele era filho de Conchita del Carmen com o jovem Zequinha, portanto um autêntico Bataillon...

            A noite prosseguia.

            Estavam na Lapa, no Rio de Janeiro. Somente poucos fregueses ali, bêbados, cansados. Clima de decadência, pobreza.

            – Pois sim, sim, disse ele. Meteu a unha na fenda do parafuso, forçou, dali saiu um líquido gomoso e muito vermelho escuro, mas o parafuso não cedeu, nem se moveu, e ele quase não sentia a dor, a cabeça do parafuso fendida rasgou o dedo, pingando suor em cima, cabeça de falo e fendida, emperrado impedia a focalização do binóculo.

            Aquilo era luneta de 1845, merda, por que?, o que? agora o olho burro vê, focaliza, e tudo vê, bem nítido e bonito, mas a imagem da orla da Praia do Cuco, a língua branca, de açúcar, que avançava até as águas do Igarapé do Inferno.

            “Tudo bem?”, perguntou ele assim. “Aquilo se move?” Agora aquilo se move?, foi o que ele perguntou e disse, ou o que disseram que ele disse.

            Do convés do “Barão do Juruá” ele observava a orla da Praia do Cuco, a copa das arvores verdes, lindo, lindo. Sim, um susto, um gesto. Que é? Não é? Continuava a se mover, tinha visto, continuava ainda vendo? Via. Com nitidez, dentro do círculo de luz do fim do foco. Do fim, do fundo escuro do foco. Mas nada, não disse do que tinha visto e estava vendo. Nunca disse. Zequinha ficou e ninguém viu quando ele desceu do navio para a floresta, e em minutos desaparecia ali.

            Oh, oh! – disse ele. O desaparecimento de Zequinha  Bataillon foi um desastre! Um desastre escandaloso. Ele era dos homens mais ricos e bonitos do Amazonas, do Alto Juruá, na época. Sabe? Sabe? Um segredo: Todas as joias da família ainda estão lá, até hoje escondidas, num cofre debaixo de uma grande pedra da Praia do Cuco. Inclusive a tiara de esmeraldas e brilhantes que pertenceu à Rainha Vitória. Mas só eu sei onde está.

            O fim de Zequinha foi lá a coisa mais misteriosa, perturbou a imaginação do povo amazônico. Hipóteses absurdas, cabeludas leseiras, injustificadas. Tolices, surpresas de todo tipo do fio fino do destino. O quê? O destino é isso, seu merda. Nós morremos e é só, morremos um pouco a cada agonia. O destino é o predito, os ditos, os feitos, a trama universal. Não, não é acidental. Só quando feito não era o pretendido. Nós agarramos o destino com as mãos de sangue, com as mãos cegas, com as mãos da sobrevivência, com as mãos que sangram. O acidental não tem deliberação. Cega necessidade física. Luta de vida e de morte, contra a causalidade da sorte. Violência, não – causa. Quando vejo minha vida, inteira, uma serie de anos e danos escrotos, estéreis, inúteis, impunes, sinto os acontecimentos, mas sem as conexões, pois eu não sei ser: ser é esperar, ser é morrer.

            Mas com você me perco. Vamos, vamos continuar.

            Zequinha desapareceu em 1912. Tinha 22 anos. Já vendido o Seringal Manixi a um homem chamado Ferreira, Dr. Antônio Ferreira, de Manaus.

            Zequinha tinha chegado da Europa, Paris era um luxo, eu estive em Paris, morei em Paris, na Rua Fondary, 30, no Hotel Fondary. Era perto da Torre. Zequinha liquidou tudo, menos o “Palácio Manixi”, o "art-nouveau" palácio, como esta minha pessoa diz que aqui falo. Adiou o regresso, meses e meses, e não tinha pressa, esperava acontecimentos.

            Zequinha era um rapaz estranho. Mas o descompasso, o contraditório, ah isso era, delicado selvagem culto. Os cabelos lisos e pretos como a mãe índia, quíchua. Ele era uma mistura de índia com uma princesa espanhola. Família Cellis. Olhinhos também pretinhos, muito vivinhos e pretos. Lábios sensuais. Príncipe! Príncipe amazônico, selvagem, sofisticado, adamado, maneiro. Pois a que beleza se reduz a só. Você é belo? O belo é o que aparece belo, para mim só. Ser é parecer. Eu fui, na juventude. Eu era um luxo. Nessa idade? O quê? Quantos anos tenho? Ah, ah, não digo não, no esconso. Tenho o tenho, no que dá. Você quantos tem? Pois, meu caro, meu caríssimo. Nenhuma, você está bêbado, você quer agradar porque eu pago. Faz bem. Continue assim. Mas era assim. Um instinto social, no que de uma propriedade das coisas, um fato em si, mas de um valor lógico, do desejo, da utilidade, do prazer, da vida, valores cognitivos. O Belo é apenas uma frase. Um atributo. Mas eu esqueço que você só tem uns poucos anos. Eu vi, vivi, estou à morte. Estou à morte. Ah, ah, ah. Sim sim. A morte! Ah, ah, – ria-se ele.


O IGARAPÉ DO INFERNO, 2

            Zequinha, não. Não e não! Relações exclusivas: Maria Caxinauá e o bugre Paxiúba, o Mulo. Você ri? Ri? Gosto. Você ri. Você acha a minha fala muito velha? À medida que envelheci, reinventei a fala, pra falar, e você sabe. Sabe, tenho pouco tempo de vida. Não, não. Tenho. Já sinto a mordida da morte. Minto?

            Zequinha nasceu em 1890, no Manixi. No meio daqueles índios. Eram os Caxinauás, mansos mansos. Eram os Numas, violentos, assassinos eles.

            O Seringal Manixi se estendia muito além das margens do Igarapé do Inferno. Aquilo saía no Igarapé Bom Jardim, que sai no Rio Jordão, e deságua no Rio Tarauacá, tributário do Rio Juruá, afluente do Solimões. Não é o fim do mundo? Onde? Onde? Ah, você? Lá, no rendilhado labirinto de ilhas e trilhas, de furos e lagos. Lá nasceu Zequinha, filho da vida do fim do mundo, filho do Pierre Bataillon e da dona Ifigênia, oh, essa mulher hábil, aparentada da família Vellarde, são colombianos, sabe? — seu pai era primo de D. Angel. A lenda ainda circula na cidade de Tarauacá. Atribuem a ela a rainha da riqueza, rainha. As ligações peruanas e colombianas de D. Ifigênia. Na guerra do Acre. Pierre se deu bem com os dois lados. Seu Seringal ficava do outro lado, fora da área conflitada. Fora.

            A educação refinada de Zequinha foi outro caso.

            Em 92, quer dizer, em 1892, a malária dizimava os curumins de todos os lados, todos, nas barrancas do Juruá. A família Bataillon, instalada à bordo do Barão de Juruá, não saía, com medo.

            E cruzou por ali um cargueiro inglês.

            Não, não está gravando, menino, socorro, não tá. Já se foi, se foi. O cargueiro se chamava Santa Maria de la Mar Dulce — o Paranáguaçu — mas também Vicente Yáñez Pinzón, pois ia, antes de dizer, que fizera parte de um acordo. O Santa passava por ali, no momento, de bubuia, de descida, de embalo, debaixo do sol dourado, apresentando vasta e esteira branca, bigodão cheio, a proa cortando com fúria as águas pardas em direção a ponta do Fagoroso, do Inhame, do Capareral, talvez de Forso, em virtude da aparência de um perfil de mulher, e dali para as ilhas, rota batida da nossa borracha. O quê? Ah, sim, sim.

            Pois bem, pois bem, pois sim, muito bem. Se você quiser eu paro, paro de contar, muito bem, muito bem, gosto de você, belezinha, assim gosto, me dá um pouco de café, mais forte, estou morrendo, hoje escolhi para morrer. O quê? Já senti a ponta da mordida da morte. Você está ouvindo, surdo? Surdo surdo. Conto conto.

            Em 1894, ou seja, dois anos depois, a epidemia passou, e os Bataillons estavam de volta ao Manixi, quer dizer Zequinha, sua mãe. Sabe: um segredo, voltou só ele e a mãe. Portanto Zequinha ficou até os oito anos de idade entre os índios, sob a influência da Caxinauá. Sinto não sinto. Não e não. Olho pra você e digo: eis ai quem tem. Sinto não.

             Em 1898 Zequinha voltou para capital do Reichland de Alsácia-Lorena, os primeiros estudos. Morava ao lado da catedral famosa, fama. Conheço a catedral de Estrasburgo. O relógio conheço. Aos quinze anos está de volta, no Seringal falando francês, alemão, tocando piano, foi quando se amasiou com a índia Maria Caxinauá.

            Em 1907, ficou órfão de mãe. D. Ifigênia faleceu. Ele voltou, de novo, para a Europa, voltou para Paris. Morava na Rue de Sevres, se não me engano, em companhia de uma mulher desconhecida. Daí também morre de malária seu pai, em 1910, e ele vem para cá, de novo, já para vender tudo, o Manixi, o império selvagem, homem de muita fortuna. Mas sim. Mas há quem diga que os dois morreram no naufrágio. Mentira, mentira.

            Uma coisa é certa: o jovem Bataillon assim como sabia tocar excelentemente uma sonata de Beethoven ao piano, podia, o puto, podia andar inteiramente nu pela mata. Como um índio!

            Sim, seu desaparecimento nunca foi explicado.

            Me dá um pouco de café, estou ficando cego, cansado, não acabo a merda desta estória, oh esse seu Narrador, menino, nunca fique velho, não! mate-se antes, dane-se enquanto jovem, mas não deixe a decomposição da velhice chegar. Isto é humilhante! E estou velho porque tenho medo, medo de morrer. Medo! A velhice é o medo! Medo de morrer. Quê? Você quer me matar, é? quer me assaltar? É? Ho ho, sinto, sinto isso, sinto, sinto, conto. E digo, já fui muito rico. Rico! Como é mesmo o seu nome?

            Menti? Não menti. Velho não mente. Inventa. Sou mais velho do que este mundo. Já perdi a noção da Verdade. Bonito? Ah ah. Você evangélico acha isso bonito? Tudo aqui é velho, as fotos, os móveis. Tudo sujo. Vivo aqui há muitos anos. Antes, tinha uma mulher que vinha, limpava, mas a Geralda morreu, morreu. Como é esta morte? Eu vivi, vivi e não ria, não, o que não sei como é a cara da morte. Nunca saberei. Saberei. Oh, sim, já. Ah ah, você vê? Você vê? Conto, conto. Está uma puta chuva, meu Deus, vai alagar tudo tudo. Que frio!

            Aonde eu? Bem. Foi lá. Lá. Foi na Praia do Cuco, à margem esquerda do Igarapé do Inferno, que foi visto pela última vez. Do outro lado ficava a Ponta do Fedegoso. Ali eram vistos, em outras épocas, os Numas, os guerreiros Numas nus, escondidos na vegetação, entre Tacacazeiros da Várzea, os paus de balsa, molongós que ali nascem, entre cipós titicas e cordas de tucum. Ali tem mais, muita sorva assassina, maçaranduba, já foi lugar de viração de tartaruga, de arapoca de cheiro, de ucuúba, de anil. Oh, vida vida. Sabe, menino, você é muito bom para mim. Você me faz bem lembrar. Você até me dá vontade de viver. Viver? Com força, com unhas e dentes, com sangue, com pus, e não quero beber o bolero. Ah ah, não tenha medo, não sou louco. Não. Vi um homem velho morrer abandonado sozinho no seu colchão – ele estava deitado em cima de um mar de suas fezes. Você não quer saber o que é a morte? Era aquilo, a cama se tinha transformado numa bacia de fezes, mesmo na parede havia fezes coladas, respingadas, espalhadas, tudo aqui fedia, pois aquele homem era agora uma montanha de excrementos e o fedor era sentido já no corredor da entrada do prédio, como algo estranho, mais que fecal, excrementício, coliforme, como uma borra aveludada de esgoto úmido e pútrido. Aquilo, digo, entrava pelos narizes e não saía nunca mais da narina da gente como se nos infeccionasse e contaminasse e empestasse por dentro com a matéria pestilenta da morte.


O IGARAPÉ DO INFERNO, 3

            Eu passei a vida toda de palavras. Eu passei a vida toda de palavras de nada. É a mesma estória! Esta é a mesma velha merda! Estou só. Estou perdido! Mas sei. Lembro-me de que eu era assim, homem do qual de mal se podia dizer perdido. Do pior. Talvez até fosse um vivente das Amazonas, da exótica Amazônia minha terra, terra santa e mata. Palavra? Nada, nada, as palavras nada valem, eu passei a vida toda de palavras de nada, mais nada, nada mais.

            Eu passava os dias e as tardes. A mim. Foi, digo. Trabalhar é executar aquelas danças de índio, sabe? Você vê? Sabe? Também não, não? Você está fazendo o quê aqui, hem? Quando? Você tem medo? Sei. Eu? Ah ah ah, você me faz rir, há o cheiro ácido da morte em cada ponto e canto.

            Eu passei a vida toda de palavras de nada! Canto. Te paguei pra ouvir, te peguei para ler, esse serviço feito. Mas fica de olho, que eu te engano, vê se não acabou. Sim. Ah, estou mais muito mais morto que vivo, sabe, vou até te contar a estória secreta do meu fim, do que vivo desta morte. É, já fiz muita coisa, já.

            Pois eu era assim, tão certo que era. E não parava em canto em ponto algum, incomodado por bicho, viajando, pelos rios, em Manaus, Paris. Às vezes sumia, era assim. Homem dúbio, substituí o sim e o não. Vivia às vezes no Seringal, com índios, nordestinos, homens da balata, e aqueles todos bêbados, na palha da desgraça, tapiris cheios de escorpiões e aranhas caranguejeiras. Beira-d'água tem mosquito, lama. Cheiro podre de peixe, lixo, merda, ácida.

            Solteiro. Raramente com alguma cunhã, alguma puta, caboclinha nova, de passagem. Dizem que fodi com a Conchita del Carmen, não sei não. Zequinha entre homens, comia com os homens, eles. Dizem que era bicha. Não garanto. Era assim, no quente. Comia peixe molho grande, caldeirada de tambaqui, tucunaré cozido, pacu frito com cará, sardinhas, leite de castanha, pirarucu de casaca, farinha do Arini com banana assada, ou no escabeche, no assado na folha da bananeira, tucunaré, pato, no tucupi, tigelas de açaí, beiju, tapioca branca brava, coco ralado, cuscuz de milho verde, ralado, cozidos no vapor — tudo com garapa, sono profundo na rede, colo de rede de prazeres, prazeres do quê? Você ainda acredita? Ah ah ah – eu sou ele, porra: o Zequinha Bataillon. Ainda bem. Ah ah ah ah... Sacana. Canto: Zequinha era capaz de embriagar e hipnotizar aqueles homens todos, que o amavam, que o idolatravam, todos, calados, sorumbáticos, mergulhavam num silêncio verde, o silêncio verde, a cola, a sela as almas, vivi aquilo.

            Zequinha ficava no Palacete Manixi. Paxiúba dormia debaixo da cama, como um cão. A Caxinauá contava estórias tristes, de Índio, fodia. O Amazonas é um lugar bonito, amaldiçoado... Maldição de Ajuricaba, o herói do Rio Iiaá. Ajuricaba caiu na emboscada dos soldados, amarrado a ferros, posto no fundo. No meio da viagem para Belém se libertou e saiu matando os soldados que estavam no convés com a corrente e gritos lançando-se nas águas escuras do Rio Negro, onde desapareceu. A morte é a escravidão! Queriam-no vivo para o humilhar, os fidalgos portugueses. Não! Antes morrer, amaldiçoou ele no rio. Não há peixe ali. Isso aconteceu em 1729. Depois, Belchior Mendes de Moraes, um capitão, fez a grande chacina, matou mais de 30.000 índios, cerca de 300 malocas, e o rio passou a se chamar Rio Urubu. Mais tarde, 40 mil índios foram mortos por uma epidemia de varíola, espalhada de propósito em presentes, roupas. Varíola infecciosa, contagio por vírus, o corpo cheio de pus, erupções purulentas, muito horror aquela morte, raquialgia, máculas, pápulas, vesículas, pústulas, cegueira, crises nervosas, respiratórias, a morte lenta, no meio da selva, hemorragias cutâneas, o corpo podre comido de formigas carnívoras. Morte.

             Me dá a tua mão! Estou morrendo! Estou dizendo. Tenho pouco pouco tempo de vida. Eu digo. Naquele dia Zequinha deu sumiço de si, no meio da floresta, a mata cheia de cobras, insetos, sanguessugas, moscas de ferrão, o pium, o carapanã, as mutucas, as cabos-verdes, os potós, os catuquis, os marimbondos, as cabas, as muriçocas, as suvelas, os besouros, as formigas. Ah, as formigas. A saúva antropófaga devora um vivente em minutos. Abandonados, os cadáveres da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, quando se ia buscar, só ossos brancos. Tem a formiga de fogo, a saca-saia, a lava-pés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a carregadeira, a táxi, a tracuá. Principalmente a tocandira, grande, peluda, dói tanto que dá febre. E a formiga roceira, a cortadeira, a guerreira, a correição... Martius disse populações inteiras fugindo das formigas. As açucareiras são capazes de pôr pra correr um exército. São milhares milhões bilhões de bilhões de formigas. Atravessam matas, rios, em balsas de si mesmas.

            Zequinha voltava do Rio Jordão.

            Tinha ido ao Barracão do Manuel de Faria, chamado "Trapiche do Commercio", onde ele comprava os vinhos franceses, os Collares, do Porto, Whisky Black, Alyrrod, Eduardo VII, Whitelys, Black Botle, o licor Benedictine — : Chartreuse, Pipermint, Anesone, Anizete, Curaçao d'Opio, Marraschino, Kümel, Cognac Macieira, Bisquit, Vermouthes. A Champagne Duc de Reims. E fiambre, o presunto português, sardinhas em lata, queijo da Serra da Estrella, queijo Eyssen holandês, a lagosta o salmão, o chá Lontra. E tinha ali Gramofones de Victor, discos de Caruso, máquinas de costura New Home, selas inglesas...

            Eu tinha ido ao Rio Juruá, de 3.200 km de extensão — águas velhas, nervosas, barrentas — no copo d’água apresentam em minutos três dedos de argila no fundo. No Juruá viviam 49 tipos de índios — rio cheio de perigos, torrões, salões, pedrais, muiunas, rebojos, ituranas, panelas, eu passei a vida toda de palavras de nada.


O IGARAPÉ DO INFERNO, 4

            Do fundo do meu coração! Em 1923 apareceu na Amazônia um rapaz. Ribamar se chamava. Não conheceu pai. Se perdeu da mãe. Vinha do Ceará, vinha, e por isso resolveu vir para o Amazonas à procura dos parentes seus: o seu tio Genaro, o seu irmão Antônio. Ribamar desembocava em nomes, datas. Embolava vida. Só sabia isso, dois parentes no fim do mundo, trabalhadores do Alto Juruá, vindos de Jantiatuba, de lá o Seringal Pixuna, a 1.270 milhas de Manaus, onde naufragou o "Alfredo". Ribamar foi ver o afluentezinho do Rio, o Eiru, pro Gregório, o Mu, o Paraná da Arrependida, o Tarauacá, o Riozinho do Leonel, o Tejo, o Breu, o Igarapé Corumbam, o Hudson, o Paraná do Pixuna, o Moa, o Paraná dos Alumas, ou Numas, o Juruá-Mirím, o Paraná do Ouro-Preto, o Paraná das Minas, o Amônea. Foi no Paraná dos Numas que encontrou. Estavam lá! Primeiro desembarcou no Seringal Pixuna, que todos conhecem, dali partiu para o Numas, no mês de maio.

            O tio e o irmão eram aviados, sabe?, dos Ramos, e viviam porque nas cabeceiras do Paraná, na direção mesma do Igarapé do Inferno, com que se comunicasse por um furo estreito, os Ramos proprietários daquelas terras, mas sim. Como posso chamar? Várias vezes?

             Ribamar não foi bem recebido, não o vadio. Nem mesmo. Os dois pensando em voltar pro Ceará. No ano voltavam. Ribamar ali, ele era uma má notícia ruim. Ruim da terra. A merda daquela terra só dava mesmo má notícia ruim. Telegrama ali é guerra. E ali Ribamar significou: miséria e morte. Sêca secada. Miséria e morte!

            Como era inexperiente, Ribamar ficou fazendo trabalhinho de casa, comida, defumação do látex. Arrumava o tapiri, o mesmo que era.

            Ah, ah, ah, quase em frente do tapiri no que trabalhava e vivia, os dias mortos, os sonhos mortos, o sono o calor, o trecho do Igarapé do Inferno mais gargalo, estreitinho, finório fundo corrido. Nunca ninguém viu passava pros outros lados, sinistros, escuros, terríveis, e lá, porque bem ali e além era o território sagrado, a região dos Numas, dos lendários seres, dos temidos, dos desconhecidos, ainda que se bem que por mais que há muitos anos os Numas andavam sumidos, desaparecidos, esquecidos, idos. Você vê? Você vê? Meu Deus! Você entende? Conforme já vai entender. Sou um velho viciado, podre e fodido, fedendo a mijo e cagado, faltando à vida por um caminho curto curtinho, mas os Numas... voltaram! Um dia voltaram! Piores putos. O rio Pique Yaco, o Resvaladero, o Torro. Que sei eu!

            Um dia, três horas da tarde, Ribamar sentado num barranco, num toco, perto da parte estreita não se disse depois da Curva do Anil – lugar bonzinho de faveiro, dava sombra, escura e tranquila –, aquilo era um banco de pesca, à sombra, à fresca, na boa, e Ribamar, sim ele, cismando estava quando apareceram as duas meninas nuas.

            Índias! Numas! Do outro lado do rio, ali, perto. Lá, lá entre as árvores, duas meninas Numas, quer dizer: a menor menina, ali, na beira d’água, com uma cumbuca, entrando na frescura das águas para banho silencioso e gozoso.

            Ribamar chocado! Hipnotizado! Aparição! Elas não ligaram para o jovem? – o vento soprava na direção delas, elas tinham de saber! Ribamar se abaixando, deitando-se no chão, já gozando, olhando aquilo, aquilo! E enquanto olhava foi botando asneira pra fora, era um adolescente.

            Eram meninas Numas.

            Porque a aldeia próxima, daquela vez muito próxima, na vazante, e baixavam das montanhas peruanas, por trás das passagens do ar, e vinham no piso do tapir, da anta, sempre pelo mesmo caminhar. Oh as antas, abundantes, saborosas, por aquelas brenhas, andando por lugares por onde só Numas sabiam, e aquelas belas índias no fundo verde escuro verde cré verde-amazonas verde-nada.

E foi. Pois no depois elas se foram embora, sumiram, desapareceram entre as folhas.

O IGARAPÉ DO INFERNO, 5

            Depois da visão das meninas Numas Ribamar não conseguiu adormecer e nada disse para o tio e para o irmão. Não. Mas voltou, no dia seguinte, apaixonado. Olha, rapaz, aquelas pequenas – paradas molhadas olhadas nem alegres nem tristes sem medo sem roupas sem nada, olhavam e eram lindas! Ribamar amou aquilo mergulhou naquilo mas não viu o formigueiro em que se metera e enlouquecido de dor e de formigas de fogo mergulhou no igarapé.

           Mas já estava alegre, e criança, e acena para as índias que, imóveis, se diziam, estátuas e Vênus, as duas.

           Ribamar ofereceu um sorriso aberto, sacana, mas elas nada não reagiam. Ele jogou água nelas e cego de paixão lançou-se para atravessar o rio, foi sair bem mais abaixo, metros abaixo, levado pela correnteza, vindo pela contra correnteza da margem vindo, aproximando-se, as duas nada não diziam, o sexo da menina maior luminoso perturbava a escuridão dos olhos da emoção do dia, a vista, ele também estava nu, e tudo aquilo era bonito aquilo, a índia estava ali, ele vindo meio bêbado, não, não sei, basta um segundo, ele era excessivo, basta a mão tocar a mão... a menina mais nova lhe dá uma dentada!

           'Ah! ', dentou, ah, bem fundo, o sangue espirra alto e vermelho da mão que o dente morde, afiado, gritado. Mas a menina maior, cunha muçu, mesmo assim se deixa navegar beliscar gargalhando ih ih ih à moda que escarnecia num namoro selvagem, querendo apalpá-la que ela zombava e brincava ih ih ih e muito se divertia.

            No terceiro dia as índias não estavam ali.

            Não e não, e em nenhum lugar. Elas se transformaram naquela flexa especada, intimidando, um aviso de morte com pena vermelha, que acenava e Ribamar, assustado, voltou ao tapiri e masturbou-se.

            No meio da noite um trovão de fogo o acordou.

            Acordado, o alarido bem forte bastante, era o quê? O quê? O tiro no seu ouvido numa centelha de vivacidade e perigo iminente que luz não mas sim o inferno vivo ali presente, era fogo, fogo os Numas a calamidade em tudo, e irmão já morto uma chuva de flexas invisíveis o tio Genaro atirando a esmo!

           Não se viam os Numas. Nada se via. A casa no incêndio os índios invisíveis e correndo pra fora dali Ribamar fugiu mergulhou naquelas águas e desapareceu na noite profunda e escura do Igarapé do Inferno se arrebatando se arrastando para longe da desgraça no desastre do tapiri em chamas.

           Os Numas não o quiseram ferir, o Ribamar.

           Os índios o respeitaram e o Igarapé do Inferno o engoliu.

           Não o quiseram matar.

           E ele mergulhou levado levado quando de súbito os tiros pararam a fogueira desaparecendo, a luz sobre as árvores se apagou, os gritos sumiram, o silêncio engoliu por inteiro o Igarapé do Inferno, levando levando no muito escuro, no rumo da correnteza, batendo em paus e margens, prosseguindo ainda em sonho o pesadelo da noite breu, sem estrelas e lua tudo muito noite, nem sentia a tragédia hipnotizado torporizado numa surdez e êxtase da vida e dos limites da morte.

           Quando amanheceu estava no porto do Palácio Manixi.

           Sombras, segredo, lágrimas e harmonia.

           Os poetas tinham os poemas, e os homens? como é, porra? quê? que? sei lá! Tudo aquilo aconteceu sim, no Seringal Manixi.

           Ribamar foi trabalhar ali, no Palácio, onde tudo era possível. Ficou uns tempos no Caraocara. Mas tem mais, tem. Tem Ribamar nessa minha estória de nunca acabar, que ainda nem começou, espere espere. As coisas se têm devagar.

O IGARAPÉ DO INFERNO, 6

                Eu já contei essa estória, já. Eu passei a vida toda de palavras de nada. Era 1898. Era. Eu sei o ponto. O que você pensa? Passo aqui os dias e noites pensando nessa coisa morta, vaga, lenta, recompondo dias e noites, que há muito perdi o sonho da vida, do mundo, o Amazonas está longe, longe, noutro lugar. Talvez eu nem saiba mais como eu era, nessa minha estória, pois tenho que inventar para fugir para contar que estou aqui.

            Em 1898.

            Naquela época, havia o bugre enorme, caboclo Paxiúba. Tinha quase um metro e noventa de altura. Cada braço valia um monstro. Era bicho do mato, me lembro dele. Vi briga dele, vi a mosca morta fedorenta da morte, a conversa dele, assassino, sim, sim, sem sussurro. Aquele bugre era filho de um negro, de um barbadiano sem nome, com uma índia Caxinauá. É o que dizem. Mas isto sei. Conheceram o pai dele, na estrada de ferro Madeira-Mamoré. O pai ainda era maior. Mas morreu cedo, de malária.

            Como sempre, ali naquele término se desembainha o Igarapé Bom Jardim – tão belo! – que desce no misterioso Jordão que corre ao largo do Rio Tarauacá que vai morrer no Alto Juruá de águas barrentas como leite – que sai triunfantemente no Solimões, no Amazonas, o Rei de todos os rios. O meu Rio. O Amazonas é o meu rio!

            Nas águas aneladas, enleadas, chagadas de mágoas do vale verde está a minha alma, lá no fundo está tudo, o começo de tudo e o fim – quando eu estiver pra morrer vou pro fundo daquele inferno verde.

            Paxiúba ia sempre ao porto daquela mulher, a Zilda, cheia de corpo, roliça, peitos de bom parto, a mãe, boa parideira. Chegava ali remando, silencioso e úmido. Canalha! A hora em que a Zilda lavava roupa era sagrada – o marido dela na estrada da mata, colhendo o leite das árvores seringueiras, e ela na beira do igarapé, lavando roupa. Às vezes até cantava, a infeliz. Eram canções que hoje já ninguém conhece, como a que tinha aquele refrão:

            Eu morro, eu perco a vida,

            Mas o amor dela não hei de deixar...

            E ela nem o via. Nunca! Ele de repente surgia na frente! Ela na prancha do cais, acocorada, batia roupa, a espuma saindo assim do muito sabão de borboletas brancas transparentes bolas ensaboadas coloridas em aéreo visitar, bobas bolas brancas voadoras se indo pelo ar da manhã daquilo como crianças de neve ou anjinhos leves de virgem maria. E Zilda de costas de cócoras concentrada na trempe, de sorte que não o tinha visto chegar de tão concentrada estava... ou fingia não ver... e vapt... e vapt... batia roupa branca na espuma do sabão do rio branca se esparzindo pelo ar como bolhas voadoras coloridas.

            – Bons dias...

            Aquela voz a assustava e assustou. Sempre se ouvia falar dele, das mortes e das mulheres estrupadas pelo bugre. O coração disparava. Pois aquela voz reconhecia, repercutia, reproduzia numa cantilena perigosa e mole, pegajosa, dela mesma saindo, era a voz, ela sabia, no que há de se ver do ventre, das suas íntimas facilidades carnes indefesas, ela arrepiava asco, sensação de arrepiante de medo, horror paralisante, receio terno, medo quente, temor, pavor, solidão, na repulsa e na aversão do ódio que a dominava pois o marido nunca tinha conseguido fazer com que ela chegasse ao orgasmo, quando não há gente no rio é que tinha mais aquilo que inspirava o horror o show o ouvir daquela voz masculinizada mole de macho que vinha vindo de dentro dela para a visitar sempre daquela maneira, ela sabia, a Zilda, sabia o que ele estava querendo, ela toda guarda fechada indefesa da desconfiança que assim ficava, tinha medo daquele homem, daquele herói, ele sempre teve o que quis, bastava esperar – era assim com a caça e com a pesca – ela ali sozinha, o marido no mato da estrada, o vestido bem molhado, a vírgula tremeluzente, úmida, nua entre as pernas a vigília, a roupa rasgada, as pernas grossas, paradas, olhando nem tristes nem medo nem nada, – pois bastava ele Paxiúba se aproximar para que ela começasse a uma espécie de pânico de um onanismo mental nos paus da margem como se fossem aqueles consolos, e prosseguia e prosseguia sempre ainda meio tomada como que dormindo, aquilo era um asar, aquilo era uma praga, um ser misterioso aquele belo macho, uma cobra, ou víbora venenosa, sonho mau de ainda não acordar no breu da noite soturna, volúpia ensandecida, – bastava saber-se olhada por aqueles olhos fixos para saber-se possuída, arrasada, entregue, atravessada, e cega como se estivesse nas estrelas, na lua, e tudo muito mole na noite no dia, quase não sentia que ia que queria morrer ou que tinha sido tomada na surdez do êxtase dos limites da morte selvagem, e era assim que Paxiúba queria e conseguia as mulheres, o corpo dela todo doente tremia como se estivesse em transe, – sim, os poetas tinham os poemas, e os homens os seus pertences , – como é? Que é? Quem?

            Era em 1898.

            Era. Eu sei, nesse ponto. Você pensa? Passo as horas vagarosas nesse aqui e posso sonhar comigo, no meu mundo amazônico, sozinho, reconstruindo as cenas que há muito perdi no rumo daquelas águas. Talvez os outros nem saibam que aquilo ainda exista, nem nessa minha velha sala eu posso ver como um filme na parede, ninguém está entre os meus velhos fantasmas, com quem falo, sempre. Em 1898, eu não vivi. Paxiúba tinha 20 anos, naquela época. Mas nunca deixou de ter caça e mulher que quis, a mulher e a caça e a pesca, como sempre quis, no porto do Laurie Costa ou em outro qualquer lugar, ali, no paraná do Igarapé Bom Jardim, Rio Jordão, Tarauacá, Juruá, Solimões, Rio Amazonas. São 6.000 km de água

O IGARAPÉ DO INFERNO, 7

             – Agora, vou contar pra você o que me disse Ribamar, naquela época... – e o velho, com as artríticas mãos trêmulas, bebeu um gole de água.

             Para beneficiar esta narrativa, digo que sou um homem condenado. Sim, câncer. Eu já devia ter morrido, mas a razão desta minha tomada é que, só esclarecendo isso, sei que é possível morrer em paz, compreender esse meu estilo antigo, que pode, talvez, ser capaz de descrever o inusitado quadro que se apresentará nesta minha estória.

             Esta narrativa é o meu relato da minha vida. Eu passei a vida toda de palavras de nada.

             Chamo-me de louco, e às vezes me trato na terceira pessoa, como um personagem, porque sei eu mesmo que não compreendo tudo o que aconteceu, e me vejo às vezes como um estranho louco.

             Naquele dia havia uma chuva compacta.

             Era um banco de madeira no alpendre do tapiri, ao som daquele Igarapé do Inferno... Lembro-me de que, naquele Igarapé, logo mais abaixo, na última linha que riscava o horizonte, naquela tarde... era uma diagonal tarde dourada, com a tempestade se aproximando... na outra extremidade do horizonte... como num sonho soberanizava o belo, o art-nouveau Palácio Maxini... oh, Deus, como era soberba aquela edificação, sede do Seringal, residência de Pierre Bataillon... Nós, você e eu, estamos agora num delírio, num sonho em busca daquele tempo, um tempo interdito. Estamos em busca do Palácio.

             Ostentava-se, deslumbrado, com seus múltiplos reflexos, as quinquilharias de seus espelhos de cristal, as suas inúmeras janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de prata rutilante ao sol.

             Você sabe, tenho vivido um tempo e vi de tudo muita coisa, viagem por muitos países, França, Alemanha, Espanha, eu louco, mas de ouro, de um ouro muito louco e muito vivo, de um brilho vivíssimo, dourado e fantasmático, delirante, desterritorializado, díspare, produzido pela acumulação primitiva de quase um século de exploração, investimento inexplicável, agenciamento de sobrepostos níveis heterogêneos de acumulação do capital, empreendimento engendrado de todo varrido do planeta, confinado ali, circunscrito ali, centrado ali, na dependência dali, da fidalguia, isolamento, anacrônico testemunho.

             Nós retornávamos à raiz da luz do nosso faustoso passado amazônico, chegávamos à brusca tarde sem sentido do Palácio.

             O monstruoso edifício ocupava a sua singularidade em todos os seus detalhes, no luxo de seu aspecto europeu.

             O Manixi (que era assim conhecida aquela construção, que depois entrou em decadência, ruína e morte, depois da quebra da borracha), Pierre Bataillon o tinha construído no meio das selvas.

             No límpido e repentino dia, o Manixi nos esperava, na imponência tranquila dos seus pontos e ângulos, com que nos recebia na sua imoral bem-aventurança.

             Esperava-nos sobre as placas negras e primitivas das águas da origem da vida no mundo, nas curvaturas do Igarapé do Inferno.

             Naquelas águas deslizavam as riquezas das cabeceiras, perdidas, devolutas, não demarcáveis terras...

             Sim, porque tudo a fortíssima modificação daquilo tem a ver com a experiência do retorno morto, do esforço inútil, do gasto orgânico.

             O Palácio era uma edificação de dois andares, mais o porão, cercada de finos gradis de ferro torneado em convulsionadas e violentas volutas de gavinhas elegantes de efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decoradas pela curva da escadaria de mármore, torta e enfática, escura e em pleno gozo das réplicas vilas europeias.

             Me desculpe, me desculpe, mas não posso deixar de exclamar de exultar de exagerar o que era visto à distância.

             De longe já dava para ver a soberania catedralesca, que o olhar apropriava, as sacadas, os balcões de mármore, avançando no ar...


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            Tudo aquilo está hoje em ruína descontínua, tudo aquilo acabou, a minha descrição corresponde ao que ele era, o Palácio, há muitos anos, na minha mocidade, na perdição da minha memória. Mas as árvores no meio da floresta estão lá, para confirmar a existência e elaboração.

            Ainda vejo bem o corpo retorcido daquele edifício novecentista no alto da terra-firme, plantado como marco por conta de rios de sangue e de milhares de libras esterlinas, o reluzente ouro da borracha.

            Era longe, muito longe, afastado de tudo, afastado de si, distante.

            Eu não sou. Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, tricotado em filigranas de ouro e pedras preciosas, de um outro modo, de um outro tempo, quando o Palácio buscava sua imagem na natureza perdida.

            Ali havia uma sala de música, onde se via um pequeno piano Pleyel, e a vitrine, onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Bergonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras, representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim. Havia a máscara mortuária de Beethoven, laureada em bronze, de Stiasny.

            Mais além a Biblioteca, em que Madame Sabóia lia em voz alta versos de Lamartine.

            Depois vinham salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias vazias e inúteis, cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, e que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon em diálogo com o violino de Frei Lothar naquela sonata de Mozart.

            Como alguém que se concentra em si, num poder surdo, ágil, terrível, que se expressava nas paredes de estuque, pintadas com irisações de ouro esverdeado e escuro, numa entrançadura de ritmos e galhadas e folhagens de vegetação alucinada e japonesa que subia por aquelas formas até ao teto refletidas nos espelhos de cristal, nas flores dos lustres, de modo a evocar a lembrança de algum exótico prazer.

            Sim, sou eu um velho escroto de um outro século.

            Por isso me demoro em descrever, tudo em minúcias, aquele Palácio onde vivi, onde observei, onde apreendi, durante tantos anos. Eu passei a vida toda de palavras de nada.

            E aquela povoação de objetos e móveis antigos, descrevendo monstros e mitos: a cômoda veneziana, a visão da atividade sexual da imagem; o armário de Boulle, as cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duc de Chartres e outros cavaleiros fidalgos, na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas, e o silêncio rigoroso do gabinete inglês; a dinâmica, a morfologia prostituída do divã de Delanois; a unidade e variante elíptica do canapê - os cipós, íris, cardos, insetos estilizados, filiformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses, num delírio neo-rococó.

            Dá para descrever as estátuas sobre lambrequins? E as rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões, as cariátides, os capitéis?

            Pierre Bataillon compôs e consumiu e fez em detritos toda a sua imensa fortuna na consumação daquelas mobílias suntuosas, amontoadas e sem uso, no processo da esquizofrenia desejante na reprodutora boca desumanizada para pôr fim ao exagerado dos seus lucros, no autofágico prazer do espetáculo de seu capital luxuriante, arte vã, fútil e suicida, em doença, em loucura, em mortes e crimes impunes vários povos desapareceram ali, nos critérios de uma singular estética do capital, nos vazios de um paganismo coquete, amoral e moderno.


O IGARAPÉ DO INFERNO, 9

            Fui eu o primeiro a avistar uma fêmea Numa. Ao vivo. Mas fui o único.

            Aquelas águas escorriam desde o princípio do mundo, das partes íntimas do mundo. Gigantescas árvores deixam passar águas que vêm dos desconhecidos lugares Numas. Os Numas lhes pertencem, da sobrevivência, esquecidas, feridas, passam. Frias. Se perdem. Perigo, atroz.

            A princípio não se pode delimitar com precisão. Onde as terras dos Numas? Onde as do Seringal?

            Depois se vêem.

            Sentem-se.

            No cheiro.

            Nas raras marcas macias.

            Uma flecha, especada no talo da árvore, atravessada na picada, vermelha. Um sinal.

            Um galho, quebrado, que diz: “Não passarás”.

            E, além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio em morte, que se separa.

            Pode-se banhar e pescar, mas deste lado. Nunca do outro lado. O lado secreto.

            Mas aos poucos os Numas se infiltravam.

            Avançavam. Atravessavam.

            Passavam além de si mesmos. Não respeitavam seus próprios limites.

            Atravessaram o rio, a ordem, o marco que existia, invisível, no rio e na floresta.

            A conduta, o êxtase, a curva onde moravam, o mediante, o perfeito domínio, os Numas se mexiam, silenciosos, invisíveis, nos múltiplos lados do rio, um rio em “S”, quase em sacado, um domínio incompreensível, ignorado, em torno do qual se distribuíam os seringueiros, aquela parte alta, terra-firme, cuidadoso controle, cordialidade.

            O Seringal, todas as noites, era invadido por fantasmas.

            O mundo se economizava.

            Harmonia de gestos, noturnos, em nenhum momento involuntários, violentos, irrompendo no pacto tênue, presente, do espírito do silencioso do palco armado.

            Não basta saber.

            Não basta esquecer.

            Não basta falar.

            Assegurar a paz, conforme um crime, como se a verdade dependesse do oculto.

            Não. Nada assustá-los, provocá-los.

            Não os ameaçar, procedimentos que advertiam a hierarquia estabelecida. Eles, fantasmáticos e míticos. Eles, em liberdade de vento.

            Porque eles eram Nada.


IGARAPÉ DO INFERNO, 10

            QUANDO, em 1876, Pierre Bataillon alcançou aquelas terras ignotas, primeiramente encontrou uma pequena aldeia Caxinauá, no temor dos Numas sujeita, na exterioridade e imobilidade do poder Númico.

            Dir-se-ia que os Numas os toleravam. Temporariamente. Mas que a qualquer momento poderiam vir, para os supliciar, exterminar.

            A aldeia Caxinauá se espremia entre os Numas. Imprevisíveis. Lá, onde só era possível encontrar seringueiros perdidos, gente ficada da expedição de 1852.

            Os Caxinauás tiveram contato com Romão de Oliveira.

            Os Numas não.

            Reagiram, violentamente.

            Desde 1847, quando Francis de Castelnau por ali passou, e os descreveu na Expedition dans les parties centrales de l'Amerique du Sud. Um raro exemplar havia na biblioteca de Pierre Bataillon.

            Também Travestin, no Le fleuve Juruá, se referia às lutas que tiveram contra os Numas.

            Em 1854, João da Cunha Correa, Diretor dos Índios, subiu o Tarauacá, descobriu o rio Gregório, o Mu, sem contato.

            Pierre Bataillon chegou em 1876.

            É o que digo, ah ah ah. Eu é que o digo!

            Naqueles anos os Numas lá não estavam.

            Passaram-se vários anos sem eles.

            Pierre estabeleceu seu domínio com facilidade, sobre terras dos pacíficos Caxinauás.

            Uma das inúmeras aldeias Caxinauás da Amazônia.

            Pierre impôs a paz. A ordem. Destruiu a cultura Caxinauá pela raiz, novo deus que era. Eles se submeteram sem reclamos. Quase alegres.

            As mulheres e os rapazes Caxinauás se transformam em objetos do Seringal. Submetidos pela força da tropa de guerra do Coronel.

            A pequena aldeia, empestada de tifo, malária, sarampo e sífilis, quase desapareceu: uma epidemia de gripe, em 1891, dizimou um terço da sua população.

            Os Caxinauás se reduziram a 84 viventes agricultores.

            Ah, ah, ah... – mas..

            Dez anos depois, porém, voltaram os Numas, os escrotos, dos mistérios das montanhas peruanas. Onde para sempre se escondiam.

            O quadro se modificou.

            Com os Numas não!

            Arredios, móveis, vigilantes, foragidos, perdidos, livres, Eles impuseram a resistência e a Lei!

            Não e não!

            Reagiram ao pacto, ao toque, ao contato.

            Pois onde há resistência, há poder.

            Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiavam-se em si. Na multiplicidade de seus pontos de força, insistindo em ser invisíveis, imprevisível, no espaço do mundo amazônico.

            Filhos de puta! Estavam em toda a parte. Mas ninguém os via!

            Lá, na exterioridade do poder do Seringal. Lá, na rede florestal.


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            Mas lentamente os Numas cercaram o Seringal. Como sombras. Fecharam o seringal nos seus próprios limites. Impediram a expansão desmesurada.

            O Seringal era imenso. Viajava-se dias, dentro dele. O Seringal teve de estacar, deter-se, refluir, limitado pela invisibilidade. Encontrou seu termo invisível.

            Os Numas eram como se não existissem. Senão pelo vazio de sua ausência. Inumeráveis, recobertos, no nenhum lugar, no não-traçado.

            Frequentemente, estavam nas árvores e pássaros do céu.

            Mas não eram aparência, mas imanência.

            Herméticos, multiplicados, fortes.

            Sem guerrilha, possíveis, mas improváveis, mitificados, solidários, violentos, irreconciliáveis.

            Prontos ao ataque. Que nunca se dava.

            Fadados a matar.

            Apavoravam.

            Eles eram pontos estratégicos, desconhecidos, na correlação de poder daquela natureza, de que eram guardiões.

            Distribuíam-se, de modo incompreensível, irregular, em focos de força. E viviam em qualquer lugar, pois eram capazes de sobreviver até debaixo da água, em bolsas de ar.

            À noite eles se disseminavam. Preparavam armadilhas nos caminhos, pequenas cobras venenosas.

            Mas eram seres frios, enevoados. Deuses que desciam para nos justiçar de noturnas culpas, olhos espalhados por toda a parte, observando.

            Às vezes deixavam-se entrever.

            Muitos seringueiros tentaram caçá-los a tiros, e por isso logo após eram mortos numa vingança fria e precisa. Eles tudo sabiam, se deslocavam rápidos. Como um sopro. Rompiam além, na nossa frente. Ou só som, se reagrupavam nos caminhos, deixando propositais pegadas, recortavam o ar com sibilantes flechas de vento, cruzavam redes de relação dentro do Seringal, infiltrados, atravessando.

            Algumas vezes chegaram ao jardim do Palácio, para afrontar.

            São homens? São fantasmas? Encantavam-se na floresta de ouro puro.

            Em sinais diziam: "estive aqui".


O IGARAPÉ DO INFERNO, 12

            – Você está dormindo, garoto doido! Não? Não está?

            Pois digo: Pierre Bataillon avançou naquela parte mais íntima, mais esotérica da floresta, igarapé acima.

            Ele costeava os limites imprecisos da morte. Da sua morte!

            Entre a tropa de guerra e a floresta dos Numas se estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas.

            É o que digo, Pierre deixava presentes, miçangas, facas e frutas, em bandejas de madeira.

            Os Numas nunca tocavam naquilo.

            Entre o Seringal e os Numas não havia comunicação.

            O quê? Sim, sim, o Seringal, à espera.

            Os Numas, na observação, invisíveis, os putos.

            Pierre evitava a guerra, buscava solução política, economizava-se, agia conforme a natureza de seus princípios, sem o risco de pagar pelo preço elevado da morte.

            Você sabe o que é a morte? A morte? A morte é isto, o que eu hoje sou... olhe pra mim... olhe pra mim!... nos meus olhos você a vê... nos meus olhos você vê o espelho da morte, à medida que morro estou e sou a própria morte!

            Não, não se assuste. Apenas ouça.

            Pierre era aquele homem magro, baixinho, tinha 1,50m de altura, elegante no cotidiano, no dia a dia, já saía do quarto todo vestido, arrumado, empertigado, ereto, a cabeça levantada, bigode à Vercingetórix, como o de Nietzsche, com quem se parecia, altivo, mas sem ridículo, ele era neto do Duque de Cellis, uma das linhagens mais nobres de Espanha, família de reis, que vinha da antiga Roma, passava pelos reis de Espanha, inteligente, culto, falante em vários idiomas, sempre ao lado de sua silenciosa mulher, D. Ifigênia Vellarde, peruana de Resvalladero, católica, filha bastarda de índia quíchua com o primo do nobre boliviano D. Angel Vellarde – derrotado em 1902 por Plácido de Castro, na Batalha de Santa Rosa – ela não gostava do luxo, era doceira, bordadeira exímia de vestidos de seda rosa cálido, tinha dois grandes diamantes como grossas lágrimas caindo dos lóbulos das orelhas, quais espantosos sóis, e sua ascendência foi usada pelo marido em alianças e pactos durante a Guerra do Acre, quando ele fez o hábil jogo da duplicidade, com brasileiros e bolivianos, ficando em paz com os dois lados, dos dois tirando proveito, principalmente valendo-se do fato de estar protegido da guerra por uma impenetrável massa de 400 km de floresta, de pântanos e de flores, sim, era impossível conceber como sobrevivia aquele fidalgo, engastado na floresta, cercado de luxo, de livros, de violinos, de quadros e de móveis...

            – “Assim é o látex”, dizia ele – “elástico como o caráter". E sai daquelas árvores como coisa fundamental, gomosa, líquido viscoso sob a casca do corpo, o pus, o plasma aquoso branco, a goma, a seiva selvagem do muco que faz sangrar a floresta pegajosamente, o pus, a terra e o esperma...

            – "É assim a seringa... o sangue da Amazônia que colhemos como um estranho mal e que um dia teremos de pagar, muito caro”.

            Sim, sim, Pierre se mantinha moralmente firme, naquele tempo, quando se sitiava o Seringal num cerco, num campo de concentração durante o cerco da dominação Numa.


O IGARAPÉ DO INFERNO, 13

                       – A Curva do Tucumã era ali, disse ele.

                     Todos olharam em silêncio respeitoso.

                      – Além daquela ponta era o território Numa. Porque até hoje, passados tantos anos, ninguém foi lá, conferir?

                      – O tapiri de Ribamar era por aqui. Tudo pegou fogo, naquela noite.

                     – E onde ele viu aquelas meninas Numas?

                     – Ali mesmo, respondeu. Os Numas vinham do rio Pique Yaco, do Toro. Era muitos, centenas, mas nunca foram vistos. Ficaram invisíveis, na floresta. Eles vinham na vazante. Era possível saber que estavam ali porque a caça desaparecia. Eles comiam tudo, o porco, o mutum, a anta. Caçavam com flecha de cana brava, com arco de palmeira. Os paus d'arcos eram a pupunha, a bacaba, o patauá, o paracuuba, a itaúba. Na caça, as flechas eram pequenas e não tinham veneno.

                     – Eles não mataram Ribamar porque não quiseram...

                     – Por que não mataram Ribamar?

                     – Não sei.

                     – Talvez as meninas estivessem apaixonadas por ele.

                     – Talvez.

                     – Naquela noite morreram todos, o tio e o irmão.

                     – Mas não ele! Mas não ele!

                     – Sim, disse o outro. Ele pulou n'água e desapareceu. Foi levado pela correnteza e acabou chegando no Manixi.

                     – De noite.

                     – Sim, de noite.

                     – Cara de sorte.

                     – Ele sempre teve sorte na vida.

                     – Vamos fotografar.

                     – Sim, vamos.

                     – Cuidado com este galho. Está cheio de aranhas.

                     – Daqui ele foi levado até ao Manixi, onde passou a ser empregado do palácio.

                     – Pierre Bataillon o tinha sempre perto de si.

                     – Ele foi protegido da Ifigênia Vellarde, mulher de Bataillon.

                     – Temos uma foto de Pierre?

                     – Acho que não. Não sobrou nada do palácio.

                     – Dizem que era baixinho e magro. Mas muito arrogante.

                     – Aqui está: “Bataillon homem magro, baixo. Bem vestido. Empertigado. Gestos largos, modos aprumados. Nervosos. Dignidade, cortesia, à moda antiga. Nariz aquilino. Cabelos finos. Bigodinho. Negro. A cabeça levantada, nobre. Aura. A gravata borboleta, o paletó de linho branco, abas, calças largas, sapatos verniz. Parece suportar, nas costas retas, barbatanas retiformes de manequim retígrado. Olha. O gesto, o olhar. Com que, altaneiro, superior, soberbo, se dirige aos demais. Soberano, concessão real. Atrapalha. Representa. Apesar da estatura baixa, como se olhasse de cima. De patamar superior. Polidez, dignidade.”

                     – Um dia apareceu num antiquário um relógio de ouro John Bull com o nome dele inscrito.

                     – E um revólver de prata, um revólver Smith, cabo de marfim.

                     – Dizem que ele atirava bem.

                     – Tinha uma coleção de armas.

                     – Vamos voltar, vai chover.

                     – Sim, vamos.

O IGARAPÉ DO INFERNO, 14

                       – Você conheceu Antônio Ferreira? Sim, sim. Ele era casado com a filha do Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha. O velho suspirou. E depois continuou: Ele esteve no Manixi. Para quê? Ninguém sabe. Eu acredito que ele queria comprar o seringal. Ai, ai, meu filho. A vida é um horror! Não, não nunca queira ficar velho, minhas costas doem, nunca se deixe ficar velho. Não é um horror? Mas a vida sim. A vida dele não não foi errada não. Ferreira era sempre ele. O homem mais elegante do Brasil. Alto, forte, rico, bonito. Jogava golfe, montava, gostava de cavalos e de carros. Nunca precisou lutar por nada para si, tudo, tudo lhe veio às mãos espontâneas. Casou-se, ficou rico. Dizem que nasceu pobre, não sei. Ele era um tipo branco, dentes bonitos, vivia sorrindo. Tinha um sorriso fixo e fácil. Meio arrogante, talvez, mas na justa medida de um príncipe. Com aquela imensa fortuna a seus pés, Ferreira continuava assim, jovial e forte. Nunca teve barriga, nunca perdeu os cabelos. Lembro-me dele jovem. Na moda. Usava uma pulseira de prata no braço. Poderia passar por pastor, ou padre, ele era assim. Educado, sempre asseado, limpo, roupas apropriadas. Manaus era uma cidade pequena, todos o conheciam. Quando ele passava todos o reconheciam. Vivia no Ideal, no Bosque, no Siroco. Exibia-se ali, desfilava pelas ruas principais. Nunca me esqueço: ele tinha um sapato marrom quase vermelho sempre bem polido, sem cadarços. Foi o primeiro sapato sem cadarços que vi. Ponta fina, sem cadarços. Em lugar de cadarços havia uma faixa de couro em diagonal. Aquilo era muito fino. Ele usava quase sempre as mesmas roupas, pois tinha poucas, talvez. Mas aquelas roupas eram sempre muito bem passadas, e como ele era um manequim, ombros largos cintura fina, era perfeito. Nunca vi um homem tão elegante quanto Antônio Ferreira. Nunca teve de arrancar o pão da vida com esforço. Nem vida trabalhosa, doença, coisa assim. Tinha sempre boas maneiras, educação de base. Namorou a Maria da Glória porque ela era a menina mais rica do Norte do país. E ele era a última moda, um jovem advogado com etiqueta profissional recém-revelada na cidade de Manaus. Foi ao Manixi no Comendador, um belo navio, comprido barco branco. Pertencente ao rico Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, pai da Glorinha, a Maria da Glória, mulher do advogado. O Comendador, muito branco, contrastava com as várias tonalidades do verde e azul, ao derredor, do verde-musgo craquelê, dos cipós-de-cobra, do esmeralda, ao cobalto das águas, à cobertura azul do céu.

                      O advogado rindo, como sempre. Agente e sucessor dos negócios do riquíssimo velho Gabriel. Parecia um menino, mas alto, altíssimo para a terra, 1,82 m de altura. As mãos delicadamente tratadas, cabelos lisos, negros. Os cabelos caem sobre aros de ouro dos óculos escuros. Terno de cambraia, chapéu Panamá, sapatos bico fino. Pretos. Um dândi perfeito ao sol, as formas do corpo forte aparecendo por debaixo da fazenda fina, pernas longas, fortes. Os olhos brilhantes, jovialidade, educação e alegria, enérgica fantasia sublinhada pelo sorriso categórico.

                      Você sabe o que é a vida?

O IGARAPÉ DO INFERNO, 15

Durante anos não choveu. Oh, oh, tá espantado? Susto? Oh, oh, oh, esta é uma garrucha antiga, não funciona mais. Peça de museu. Como eu. Já vivi demais. Estou morrendo, ah, ah, ah. Muito aprendi com a lição da vida. Não tenho a quem deixar esta lição senão a você, a este gravador. Falo com as paredes, falo com um gravador? Você é um gravador, menino? Ah, ah, vê lá, muda a fita, ótimo, ótimo, você é perfeito, vou contratar você como meu ouvinte exclusivo, com bom salário... O quê? Se sou rico? Já fui, menino. Já fui muito rico. Como vê este apartamento velho não é de ouro. Você é ingênuo, meu menino, ingênuo e bobo. Vou te ensinar, bem que vou, vou te dizer umas coisas, sabe? Você vai ficar logo esperto, você não sabe com quem está falando, você vai ver. Tá com medo? Ah, ah, ah, mas que, sou apenas um velho, você é o neto que não tive. Viu como o chofer te tratou? Era o vovô com seu neto, todo mundo viu, tá? Ah. Ah.

Deixa eu te contar, deixa. Sim e sim. Aquela casa era cercada de chão de tabatinga. Tinha duas entradas: uma que dava para o igarapé, e era aquilo de se ver, bonita, imponente. A outra dava para a mata. Não havia nada plantado ali. Porque naquela terra não se pode plantar nada, sabe? As saúvas vêm tirando logo. Aquelas saúvas matavam tudo. Não. É impossível acabar de todo com as saúvas da Amazônia. Só bomba atômica. Você destrói um formigueiro aqui e ali e ao redor todos. Mas certa noite você ouve um crepitar de fogo: são elas, as filhasdaputas!, vorazes, saúvas em correição, vindas de qualquer lugar e já destruíram tudo, tudo tudo, todo o trabalho de um mês um ano, toda a comida que você esperava comer e todo o dinheiro que você esperava receber depois de trabalho. Uma merda! Ali você tem de virar índio. Que povo, aqueles índios! Eu, meu filho, já estou cansado e morro feliz, passei todos aqueles anos lutando, o povo que se trate de defender, é melhor, quebrei a cabeça durante todos esses anos todos – sabe? Político?! Fui deputado! – mas sim, sim, vamos à nossa estória que você está aqui para isso, e eu tirei você de seus cuidados, oh, que lá sua vida era melhor do que viver aqui nessa sala escura, cheirando a mofo e morte, onde vivo.

Pois foi assim mesmo que o digo, eu, o narrador.

Vou mais, sigo. Por muito tempo ainda tenho o que contar. A peripécia mal começou. Fique sossegado. Pois o melhor ainda está por v

O IGARAPÉ DO INFERNO, 16

                       – Sim, vida, vida. Fecundada vida! Erotizada vida! Mas vida é o que peço nesses meus últimos momentos. Pois pois foi a vida, da vida, ela que me fez viver durante tanto tempo neste meu corpo hoje tão perto da morte. O quê? Sim sim, mas ainda posso viver muitos anos... muito mais do que você, menino! Ainda sinto, ainda sinto. Mas sinto. Se aperto doem. Isto tudo vai acabar comigo, um dia desses, vai. O novo remédio está atuando. Mas não se assuste, menino, ainda estou vivo e continuo contando e terminando, ah, ah, ah, não. A vida é minha, a noite é minha, com as estrelas. Passo as noites fora, sabe, depois que você dorme, eu saio. Ninguém me controla. Não! Eu quero e mereço. São talvez nas últimas noites de minha vida, talvez, mas as quero, as mereço, eu as quero e mereço. Gosto de andar, sobretudo de noite. Nas ruas escuras e desertas.

                     Eu estou morrendo e vem você perguntar se não tenho medo de ser assaltado!

                     Conto é continuo. Conto. Como no meu Amazonas. Como naquele dia do ataque dos Numas à aldeia Caxinauá. Mas tenho de atar as peias para poder explicar umas coisas fundamentais. Estou confuso. Sim, sim...


O IGARAPÉ DO INFERNO  (ÚLTIMO CAPÍTULO)

                      Manuel Bastos, entretanto, piorou e entrou em coma. Um dos seus últimos momentos lúcidos foi perguntar por seu gravador. Ele queria dizer algo, como que fazer um depoimento. Mas logo nada conseguiu falar e desfaleceu, sendo levado para o hospital.

                      Depois de sua morte não mais se ouviu falar dos depoimentos chamados por ele de “O igarapé do inferno”.

                      Aquelas páginas datilografadas ficaram esquecidas na gaveta de uma cômoda até que ser comprada pelo autor dessas linhas em 1972.

                      Na realidade, abandonei o incômodo móvel numa casa alugada na rua Prof. Eurico Rabelo, perto do rio Maracanã, que não existe mais.

                      Os textos permanecem comigo, até hoje.

                      Com Manuel Bastos morreu o último remanescente daquela época.

                      O Palácio Manixi desapareceu na floresta completamente. Hoje é difícil localizá-lo. As ruínas daquela construção talvez ainda estejam lá.